.
arquivos

Arquivo para

Transição democrática em Angola

Por Alberto André Carvalho Francisco*

Para chegar-se a uma ideia básica sobre a temática de transição democrática em Angola, torna-se necessário o uso do modelo de Rustow de transição democrática, análise do processo eleitoral e parte da classificação da Freedom House que irá ajudar a elucidar se as reformas políticas efetuadas completaram a transição democrática, ou seja, se podemos considerar Angola como um Estado democrático.

Democracia é uma forma de regime político onde os cidadãos escolhem, em eleições competitivas, os ocupantes dos lugares mais altos do Estado (Bratton e Van de Walle). De acordo com esta definição, uma transição para a democracia ocorre com a instalação de um governo escolhido na base de uma eleição competitiva, desde o momento em que o escrutínio seja conduzido de uma forma livre e justa e conduzida dentro de uma matriz de liberdades civis, e que todos os concorrentes aceitem a validade do resultado das eleições. Mas infelizmente em África na sua maior parte dos Estados, as eleições só são consideradas livres e justas para os líderes políticos quando o seu partido vence as eleições.

No estudo das transições democráticas de um regime autoritário para democrático, podemos encontrar duas em destaque: 1- através da negociação, o regime autoritário estabelece determinadas cláusulas, se mantendo no poder. 2- ruptura ou colapso – aquela em que as forças incumbentes não têm poder nenhum após uma guerra ou conflito interno , eles acabam saindo derrotadas.

Segundo Rustow são quatro fases ou condições na transição para a democracia. A primeira, a da unidade nacional, corresponde à fase de estabelecimento na qual se produz um consenso voltado a identidade política. A segunda fase é conhecida como preparatória marcada pela intensa e inconclusiva luta política, por conflitos entre grupos opostos. Este conflito pode ser tão intenso, ao ponto de derrubar a unidade nacional, condição necessária para a democracia. A terceira fase é da decisão, muito complexa, momento em que os partidos decidem aceitar a diversidade na unidade, para esse efeito adotar compromissos, regras e normas democráticas, que atribuem a cada um alguma participação na vida política. A fase final é a da habituação, corresponde a conclusão do processo de transição, com o acordo político entre as partes, a estrutura política democrática montada e a consequente aceitação gradual por parte da população ao longo do tempo.

Em Angola, como consequência da sua independência em 1975, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), adotou como modelo político o comunista – leninista que implicava o centralismo político com apenas um único partido. Com o decorrer do tempo, nos anos 90, devido às pressões feitas pela União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) no palco das operações de guerra, com as mudanças ocorridas no cenário internacional (a dissolução  da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS) e ainda com a emergência de novos interesses por parte de um setor organizado (Comitê Central e o Bureau Político do MPLA), o MPLA foi forçado a mudar para um sistema multipartidário. Assim, o papel do Estado passou a ser mais reduzido sobre a economia e com liberdade parcial da imprensa e da sociedade civil nas questões políticas do Estado.

Consequentemente, após um longo período bastante conflituoso entre o MPLA e a UNITA com apoio ideológico e militar por parte de forças estrangeiras, o processo de paz teve início em 1992, formando-se então os partidos políticos e sendo realizadas as primeiras eleições legislativas e presidênciais ao mesmo tempo. As eleições ocorrem pacificamente com mais de 91% do eleitorado registrado, ou seja, 4.828.626 eleitores no primeiro turno. Onze candidatos foram concorrentes a presidência, tendo como resultado, José Eduardo dos Santos 49% (MPLA), Jonas Malheiro Savimbi 41% (UNITA) e os demais 10%. Enquanto que 17 partidos e uma coligação concorreram as legislativas, o MPLA obteve 53,7% contra 34,1% da UNITA.  A ONU e seus parceiros internacionais, na condição de observadores internacionais, consideraram válidos os resultados, isto é, as eleições foram consideradas livres e justas.

Quando tudo parecia caminhar para uma transição democrática bem sucedida em Angola, Savimbi, o líder do UNITA, recusa-se ir para o segundo turno das eleições alegando fraude no resultado do primeiro turno, contrariando uma condição básica para a existência da democracia, que é aceitação dos resultados. Savimbi vai reagrupar todas as suas forças armadas e lançar uma ofensiva contra o Governo no poder, ocupando alguns municípios do território angolano, por conseguinte, mais uma vez o país se vê mergulhado num guerra civil e colocando por água abaixo todo o processo de democratização. Foram efetuadas inúmeras tentativas de mediação entre o Governo e a UNITA por parte da ONU e vários chefes de Estados africanos, mas todas fracassadas.

Saliente-se o fato de que durante o conflito armado ocorreu uma dissidência na UNITA, ou seja, a criação de uma UNITA RENOVADA com a participação no parlamento como a mais direta oposição ao Governo, mas sem o reconhecimento de Jonas Savimbi. Após vários anos de conflito interno civil entre MPLA e a UNITA, em fevereiro de 2002 com a morte de Jonas Savimbi o cessar fogo é imediato, culminado com a assinatura dos acordos de paz em 4 de abril de 2002. Inaugura-se, a partir de então, uma uma nova era para o Estado angolano.

Anos mais tarde, em fase de reconstrução do país, em setembro de 2008 são realizadas eleições legislativas, com uma vitória esmagadora do MPLA que obteve 81,64% dos votos equivalente a 191 dos 220 assentos no Parlamento, seguido da UNITA que cai de forma abismal em relação a 1992 com 10,39% e passa a ter 16 deputados. O Partido da Renovação Social (PRS) como grande surpresa com 3,17% ficou com 8 deputados; a coligação Nova Democracia (ND) com 1,20% com 2 deputados e a Frente Nacional de Libertação de Angola com 1,11% com 3 deputados. Assim sendo, o sistema político de Angola era o semi-presidencial em que se concentra maior parte dos poderes de decisão sobre várias matérias ao Presidente.

Estão previstas para Agosto desse ano de 2012 as novas eleições, passados quatro anos desde as últimas realizadas em 2008. O povo angolano prepara-se mais uma vez para ir às urnas de votação, mas desta vez de forma diferente, sendo que haverá uma única eleição para os deputados e para o Presidente da República.

De acordo com a nova constituição de 2010, é eleito Presidente da República e Chefe do Executivo o cabeça de lista pelo círculo nacional do partido ou coligação de partidos políticos mais votados no quadro das eleições gerais. O cabeça de lista é identificado, junto dos eleitores no boletim de voto. As eleições gerais são convocadas até noventa dias antes do fim do mandato e realizadas até trinta dias antes do termo do mandato do Presidente da República e dos Deputados à Assembleia Nacional em funções. Saliente-se o fato de que o mandato do Presidente da República tem a duração de cinco anos, inicia com a sua tomada de posse e termina com a posse do novo Presidente eleito. Cada individuo pode exercer até dois mandatos como Presidente da República.

Após discorrer sobre o processo eleitoral, podemos afirmar que o MPLA conseguiu implementar a democracia em Angola? Será que Angola cumpriu com todas as fases de transição de democrática?

A guerra civil, que durante muitos anos assolou o país, não permitiu que a transição ou consolidação democrática fosse feita muito antes. Conseguiu alguns sucessos, como o fim do marxismo leninismo, a abertura da economia, as mulheres têm proteções legais e ocupam cargos ministeriais e 37% dos assentos do Parlamento, avanços constitucionais, ou seja, uma constituição mais adequada com a realidade do país, a realização das ultimas eleições etc. Mas apesar destes avanços, existe ainda um longo caminho a percorrer em Angola para que se possa considerar uma democracia consolidada, partindo da ideia de que para tal, o resultado do processo eleitoral das próximas eleições sejam aceites democraticamente por todos partidos. O Poder Executivo ainda demostra  ser mais forte que o Poder Judiciário, dificultando o exercício das suas funções com autonomia. Por último, a classificação da Freedom House é a pior possível, considerando Angola como um país “not free” traduzido “não livre”. Segundo a Freedom House, Angola ainda deixa muito a desejar em vários aspectos, principalmente aos ¨Direitos políticos e liberdades civis¨. A violação a liberdade de expressão dos jornalistas, a corrupção que ainda afeta boa parte da governação, a não garantia a liberdade de associação e reunião na prática, a restrição as atividades de várias ONGs locais e internacionais, o direito à greve e os sindicatos, a prisão preventiva prolongada, a superlotação dos sistemas prisionais, a violação aos direitos da criança e ainda o trabalho infantil etc. São alguns dos problemas apontados pela a Freedom House que determinam a péssima classificação como não livre.

Será que após as próximas eleições no mês de agosto do corrente ano, irá mudar algo no atual cenário democrático interno de Angola?

Referências bibliográficas

BRATTON, M. VAN DE WALLE, N. Democratic Experiments in Africa Regime Transitions in comparative, 1998.

CAVALCANTI, Carlos Alberto de Moraes. O processo de democratização em Angola e Moçambique: Um estudo comparativo. Brasília: Universidade de Brasília, 2002, Dissertação de Mestrado.

CHIMANDA, Pedro Fernandes. Do Monopartidarismo à transição democrática em Angola. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2010, Dissertação de Mestrado.

Comissão Nacional Eleitoral de Angola – CNE.

Constituição da República de Angola, 2010.

Freedom House

JOVETA, José. A Política Externa de Angola: Novos Regionalismos e Relações Bilaterais com o Brasil. Rio Grande do Sul: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. Tese de Doutorado.

RUSTOW, Dankwart. Transitions to Democracy: Toward a Dynamic Model, Comparative Politics, Vol.2, nº3, April 1970.

 

Alberto André Carvalho Francisco é estudante do programa de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília

Resenha – Estação das chuvas (J. E. Agualusa)

Como tratar um assunto em que abundam siglas, traições, paixões, memórias desencontradas e cinzas de documentos? Como tangenciar os nervos da dor sem escrever panfletos? Como biografar aquilo que é tão diverso de uma maneira própria, honesta e sem trair a dor já sentida? Como fazer memórias de algo que existia antes de si próprio e com o que confundiu sonhos? Perguntas assim habitam a redação de um livro como Estação das chuvas. É isto que está nas linhas do angolano José Eduardo Agualusa.

Flertando entre memórias e ficção, Agualusa se aventura na narração da independência de Angola longe do oportunismo e da infantilização terceiro-mundista. Ao rechear seu romance com referências à sua própria história, Agualusa aproxima seu leitor das glórias íntimas cheias de idealismos de alguém que foge de uma família acomodada no interior de Angola para se dedicar à libertação, bem como não os poupa das misérias revolucionárias, das distâncias abissais entre a vanguarda revolucionária e a população.

Ao posicionar o foco narrativo entre sua história e a personagem Lígia, de família tradicional portuguesa, o que Agualusa promove é um amplo panorama angolano da vida social simples; envolvendo tanto as riquezas nativas quanto as glórias dos casarões coloniais, mas sem jamais esquecer das marcas de uma guerra nem das misérias da própria sociedade angolana. Além do amálgama social e temporal, o romance não hesita em se embrenhar nos campos do fantástico, das histórias da África colonial distante, porém sem perder o centro do imaginário popular daquela sociedade que não se transformou por completa com a independência, “o dia eterno” de Agualusa. As vidas narradas não são a tradução dos projetos de Agostinho Neto e do seu Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

Lígia é a transgressão africana que chega a Berlim, que conhece a lusofonia e que se faz conhecer. Lígia é um abalo a mais na debilidade do governo de Salazar, um novo cravo na revolução. É uma história de colonialismo e um presente de mudanças para um futuro de sonhos, um corpo vibrante cuja voz quer ser ouvida mas espera na consciência dos sábios. Alguém que atravessou o século XX em todas as suas paixões e não deixou de preparar o porvir deste século, tocou as novas gerações (tombadas em combate ou não). É a fundadora forte, a raiz da revolução como deveria ter sido, de pessoas; que é convenientemente isolada pelo oficialato do MPLA. Lígia não sabe em quem confiar, mas confia, lembra que tem solo e braços por debaixo do sangue da guerra. Lígia sofreu a guerra com a altivez da grande nação. A Lígia de Agualusa se confunde com a Angola sonhada nos rincões da revolução, Angola que se quer Angola a seu jeito, sem Lisboa sem MPLA; Angola de Luanda.

Ler Estação das chuvas é, de algum modo, esquecer a história dada e atrever-se no possível daqueles anos, além de sofrer as decepções do sonho. Suspender por alguns momentos os tropeços, as dores e as histórias oficiais angolanas ao longo deste romance permite ao leitor compreender as dúvidas e as forças que cercaram o processo de libertação. Lembrar que se trata de um povo que, segundo o próprio Agualusa, é capaz de sorrir depois da guerra, é capaz de imaginar plantações de manga na Lua em meio ao espanto da chegada do homem lá.

Eleições gerais em Angola

Por Alberto André Carvalho Francisco*

A pouco menos de dois meses, mais precisamente no dia 31 de Agosto de 2012, o povo angolano vai às urnas para escolher os deputados à Assembleia Nacional e o “novo” Presidente da República. De acordo com a nova constituição de 2010, no artigo 109º, a eleição dos Deputados e do Presidente da República e chefe do Executivo é feita ao mesmo tempo, ou seja, o cabeça de lista dos deputados pelo círculo nacional do partido ou coligação de partidos políticos mais votados no quadro das eleições gerais é considerado o Presidente da República.

As primeiras eleições gerais em Angola tiveram lugar em setembro de 1992, malgrado o fato de que os resultados da mesma foram, na ocasião, renegados por Jonas Savimbi, líder do principal partido da oposição, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), o que fez com que culminasse uma guerra civil.

Em fevereiro de 2002 tem fim o conflito, com a morte de Savimbi em combate e os chefes militares do governo e representantes do Unita assinam um acordo de paz em abril do mesmo ano. Por conseguinte, as segundas eleições gerais aconteceram em 2008, nas quais o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) venceu com mais de 80% dos votos.

Não obstante o fato de ser apenas a segunda eleição consecutiva e convocada seguindo todos os trâmites constitucionais, podemos dizer que o fator regularidade é um dos elementos que vem fazendo parte da vida dos cidadãos angolanos aos poucos, com periodicidade.

Os partidos da oposição aceitaram os resultados, mas a organização de defesa dos direitos humanos – Human Rights Watch (HRW) alegou dúvida na transparência do pleito pela parcialidade na provisão de fundos públicos e a grande cobertura informativa a favor do partido no Poder.

Quanto a eleições livres e justas, esse é um dos principais problemas que Angola enfrenta, tanto a nível nacional como internacional. Esses elementos estão ligados ao fator aceitação, devido ao fato de que durante muito tempo, os líderes políticos por norma só as consideravam livres e justas quando o seu partido saía vencedor no pleito. Mas felizmente, a aceitação dos resultados eleitorais por parte dos partidos políticos vem sendo aceite aos poucos, tendo como prova as últimas eleições que foram muito pouco contestadas por parte principalmente dos partidos derrotados.

Apesar desses passos positivos de maturidade política democrática em Angola, ainda existem indícios negativos a respeito da consolidação democrática no país, o que leva-nos a questionar se os Partidos políticos angolanos estão preparados a aceitar com a maior naturalidade o resultado das próximas eleições.

Convergência Ampla para a Salvação de Angola – CASA

Este ano em particular, como resultado das fragmentações dos dois grandes Partidos da oposição em Angola na Frente Nacional para Libertação de Angola (FNLA) e na UNITA, houve uma transformação política no cenário angolano, com a criação da CASA, a mais nova formação política de Angola. A CASA foi muito recentemente formada por ex- membros da UNITA, tendo Abel Chivukuvuku como líder principal da CASA. Vale realçar o fato de que o mesmo já foi membro sênior da UNITA.

Com a criação da CASA, a UNITA passa a estar mais fraca o que, a priori, poderá ser considerado como negativo para a oposição, uma vez que na mesma com o aumento de mais um partido a oposição demostra estar mais fragmentada e fraca, favorecendo o MPLA. Por outro lado, alguns políticos e analistas angolanos mais otimistas acham que a CASA, embora tenha sido criada a menos de cinco meses das eleições gerais, conseguiu se implantar em boa parte do território angolano, dando mostra de estar ativa na política angolana, procurando dar outra roupagem ao cenário político do país.

Enfim, a grande questão que se coloca é se toda essa diversidade de partidos políticos conseguirá formar uma oposição forte para fazer frente ao Partido no poder.

Alberto André Carvalho Francisco é estudante do programa de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília

Sul do Sudão – Um país no esquecimento

Em menos de um mês o Sudão do Sul completará um ano de existência como país soberano e reconhecido pela comunidade internacional. Trata-se do quinquagésimo quarto Estado africano e um dos mais pobres países do mundo. A expectativa inicial de que o surgimento desse novo Estado, criado a partir do desmembramento do Sudão, traria paz e estabilidade para a região, infelizmente não se concretizou. Hoje, o país vive uma guerra não declarada com o Sudão, o que torna ainda mais difícil sua estruturação.

Durante esse primeiro ano de existência muitas negociações envolvendo os governos do Sudão do Sul e do Sudão foram frustradas, apesar da boa vontade e do envolvimento da comunidade internacional e da União Africana que buscaram criar mecanismos para o convívio mais harmônico entre os dois países.

A criação do Sudão do Sul ocorreu após uma longa e desgastante guerra que durou mais de duas décadas e que envolveu o norte e o sul do Sudão. Havia uma aspiração antiga por parte de setores expressivos das sociedades que habitam o sul do Sudão pela criação de um novo estado, uma vez que as diferenças entre o norte e o sul são antigas e profundas. Vão de diferenças étnicas e religiosas, com o norte sendo predominantemente muçulmano e o sul, cristão e animista, a perspectivas políticas diferenciadas.

Em termos econômicos o Sudão do Sul é muito dependente da exploração de petróleo, de forma que 98% das receitas do Estado provem do hidrocarboneto, que é integralmente exportado pelos oleodutos do Sudão. E como agravante o país possui apenas as reservas, sem dominar sequer o processo de extração e nenhuma via de escoação da produção. Em contraste, mais de 85% da população do novo país ganha a vida em atividades ligadas à agricultura, predominando a atividade de subsistência.

O principal parceiro econômico e comercial do Sudão do Sul, mas também o seu principal inimigo, é o Sudão. Aliás, a dependência é mútua, uma vez que no processo de divisão a maior parte das reservas petrolíferas ficaram com o Sudão do Sul. Todavia, como salientado, a única via de escoação se dá pelo território, pelos oleodutos e pelo porto do Sudão, que naturalmente cobra por sua utilização.

São grandes os desafios das autoridades do novo país. Enquanto os governos do Sudão do Sul e do Sudão não encontrarem uma via de convivência pacífica, muito pouco pode ser feito. A paz é condição essencial para que haja uma chance de sobrevivência digna do novo país.

Sem a paz será inviável para o governo conseguir promover uma diversificação econômica capaz de gerar emprego e renda para a sua população. Não é possível manter o elevado grau de dependência com relação ao petróleo e nem tampouco exaurir os parcos recursos do Estado na compra de armamentos e manutenção de uma força militar.

Enfim, as perspectivas atuais não são nada boas para o regime do presidente Salva Kiir Mayardit. O Sudão do Sul necessita de um apoio internacional mais propositivo, que deveria começar pelo maior envolvimento dos Estados africanos, que podem e devem atuar por meio da União Africana. Se os africanos e o mundo insistirem em manter o descaso com relação ao povo sul-sudanês, teremos tudo para muito em breve incluir o Sudão do Sul no rol dos conflitos esquecidos.

Memória e necessidade, África do Sul pós-euforias

Há cerca de vinte anos e de quatro presidentes, findava na África do Sul uma das maiores aberrações do conturbado século XX: o regime do apartheid. Nas ruas, a catarse de uma maioria negra oprimida desde o início do século, a euforia da inovação e, a frente de todos, Nelson Mandela, Nobel da paz e líder inquestionável. Enquanto o parte do continente ardia em conflitos sem fim, a África do Sul explodia em festas e em demandas contidas.

O que se verificou na sociedade sul-africana foi a mais pura demonstração da pressa humana. Em um átimo, parecia que os luxos da era do jazz confinada nos bairros brancos das grandes cidades poderiam tocar todos os rincões do país; o que era assegurado por décadas para menos de 5% da população se tornava em dias uma demanda real de todo o restante. Muito provavelmente, o anel de estabilidade neste barril de pólvora foi a transição capitaneada por nomes como Mandela e Desmond Tutu, líderes grandes o suficiente para perdoar e para punir, sábios a frente de uma república nascente.

A mesma pressa humana pela melhora das condições de vida que desestabilizaram tantos países africanos no último quartel do século passado foi convertida pelos líderes da transição sul-africana em esperança e em trabalho. A quase unanimidade em torno do governo Mandela do Congresso Nacional Africano (ANC) solidificou de maneira única as bases da República da África do Sul, sendo capaz de estabilizar o país no longo prazo em termos institucionais.

Mas o tempo passaria. E Mandela nunca perdeu isto de vista; sabia que era necessário edificar um país, ser um pai fundador para que o grande projeto não soçobrasse em personalismo. Recusada a reeleição ao final do mandato, estava assentada a grande reserva moral da política sul-africana na figura de Mandela, que caminhou para a História como grande líder, mesmo não tendo logrado alterações mais substantivas na situação econômica da África do Sul, que não se resolveria apenas com um panteão.

Se, por um lado, a população guarda todas as devidas honras para o período inaugurado com a eleição de Mandela em 1994, esta mesma população não deixa de demandar. Logo, embora possa esperar a lenta caminhada para uma verdadeira sociedade sem preconceitos, não pode aguardar ainda mais tempo para alcançar vidas melhores. Mais uma vez, o tempo histórico não coincide com o tempo social e respostas são exigidas.

Lastreado pela forte figura de Mandela, o ANC elegeu os três presidentes subseqüentes (Thabo Mbeki, Kgalema Motlanthe e Jacob Zuma), mas vem tendo sua imagem deteriorada dentro da sociedade sul-africana, cuja paciência diminui a cada novo escândalo presidencial, especialmente na atual administração Zuma. Embora, não há nada capaz de abalar o prestígio de Mandela.

Dentro desta configuração, dá-se uma das mais delicadas questões da atual África do Sul. Se, por um lado, há, por parte da população, uma constante preocupação em reforçar a memória de luta contra o apartheid, em fortalecer o peso simbólico das conquistas pós-1994; por outro, são exigidas soluções em um tom muito diferente daquele usado durante a euforia imediata. A crescente criminalidade, o desemprego entre jovens, a queda de salários fora dos grandes centros, as desconfianças contra o legado da Copa do Mundo de 2010 e a imigração descontrolada vão criando zonas de pressão cada vez maiores sobre o governo da ANC.

O distanciamento temporal do fim do apartheid jogará contra o Estado sul-africano, hoje mesmo já não é mais possível evocar as conquistas da década de 1990 como forma de arrefecer os ânimos sobre a atual situação do país. Já não se pode mais atribuir somente ao apartheid as precariedades abundantes. Nos jornais da África do Sul abundam críticas implacáveis contra o Executivo, desde denúncias gravíssimas de corrupção e de ineficiência quanto charges que representam um governo néscio e decrépito.

A maior economia africana tem muitos desafios a responder nos próximos anos. A vida pós-Mandela não poderá se calcar apenas na memória coletiva contra o regime segregacionista, embora não possa viver sem ela. Um dos países mais agraciados com grandes líderes vai se aproximando da baixa média de qualidade dos “estadistas” contemporâneos e a euforia tenderá a zero. Resta saber como operará a África do Sul em condições politicamente tão prosaicas e economicamente tão complexas.

O promissor mercado de telecomunicações na África

Por Philipe Moura*

Ao se pensar no mundo em desenvolvimento, em especial o continente africano, a tendência que não escapa a leigos e acadêmicos é a associação deste a conflitos e pobreza. De forma geral, relacionar África a inovação e tecnologia de ponta parece um disparate. Mesmo o mais otimista dos analistas vai reconhecer que projetos ambiciosos vão frear ao se deparar com o déficit infraestrutural do continente. Desse ponto de vista, a situação se agrava na medida em que essas dificuldades afastam investimentos e então se cria um ciclo vicioso. Mas isso está longe de ser o caso no setor das telecomunicações.

Recentemente, a África superou a Ásia no que diz respeito ao crescimento em conexões de celular. De acordo com o Wireless Intelligence, o continente vai alcançar a marca das 700 milhões de conexões no fim do primeiro semestre deste ano. Os dados mais recentes sobre o mercado, que conta com uma população de mais de um bilhão de pessoas (13% da população mundial), indicam uma penetração de pouco mais de 62%. O crescimento médio do continente foi de 19% em 2011, o que significou, entre janeiro e abril desse ano, um acréscimo de mais de 26 milhões de conexões.

O senso comum de que a África é um continente homogêneo também não se aplica às telecomunicações. Embora o crescimento notável seja, de fato, generalizado, o sul da África, que tem uma penetração de incríveis 131% – o que é 16 pontos percentuais maior que a média do continente Americano –, mantém constante um forte crescimento de 21% ao ano, enquanto o leste africano, com penetração de apenas 42%, responde por um mais recente crescimento de 26%. Ao mesmo tempo, o mercado egípcio, com penetração de 101%, não dá sinais de saturação, e começa a atuar em benefício dos consumidores, na medida em que se acirra a competição por maiores fatias de mercado e a busca por incluir os setores mais desfavorecidos da economia.

O mercado africano é puxado pelo volumoso aumento das conexões pré-pagas, que significam mais de 95% do total de conexões – a título de comparação, nas Américas, esse percentual é de 81,5%, e, na Europa ocidental, 50,3%. Isso é um dos principais responsáveis pelo fato de a receita líquida média por cliente (ARPU, da sigla em inglês) na Europa ser de pouco mais de 27 dólares, e, na África, ser de oito dólares. Deve-se pesar, contudo, que, segundo dados do Banco Mundial em 2010, o PIB per capita na Europa supera 25 mil dólares, enquanto, na África, é de apenas 1500 dólares.

Entretanto, a margem EBITDA (ganhos depois de juros, impostos, depreciação e amortização, da sigla em inglês), que representa a lucratividade da companhia, varia de 27%, na Europa, para 45% na África. Ainda, ao passo que a margem EBITDA vem lentamente diminuindo na Europa, seu aumento é registrado anualmente na África, dado que, em 2001, a margem era de “apenas” 34%. Isso se explica essencialmente por dois fatores: por um lado, o alto custo oriundo do excesso de regulação na Europa; por outro, o baixo custo de operar em larga escala no continente africano.

Mesmo sem considerar o grande potencial de aumento da escala dos serviços, o mercado africano ainda tem espaço para grandes investimentos em tecnologia. 89% de todas as conexões no continente é 2G, e apenas 1% desses 11% restantes responde pela tecnologia LTE, que é um padrão de ponta para transferência em alta velocidade de dados. E, enquanto o crescimento anual de 2G é de 14%, a tecnologia 3G se expande em um ritmo de 44%. Dessa forma, embora a região ainda esteja atrasada com relação ao padrão de tecnologia, a África caminha a passos rápidos para a convergência.

Como diz Ndubuisi Ekekwe em seu artigo de 2012 no Harvard Business Review, copie modelos de negócio bem sucedidos quando não puder inovar. E, via de regra, isso tem sido o caso da África. Por exemplo, adaptações do sistema de pagamentos móveis via celular, conhecido como mobile money, rapidamente conquistaram quase toda a África depois do caso de sucesso que se tornou o Quênia, que, por meio da Vodafone, implantou o sistema em 2007. A proposta do mobile money vinha sendo testada nas Filipinas desde 2002, mas obtinha sucesso limitado. No Quênia, contudo, o sistema financeiro e outros setores da economia logo sofreram um forte spill-over do crescimento das telecomunicações, verdadeiramente revolucionando as formas de fazer pagamentos e negócios no país, e gerando uma grande onda de bancarização no país.

O oferecimento de serviços financeiros às camadas mais pobres da população significa o aumento das oportunidades, na medida em que não apenas possibilitam a contração de microempréstimos e a criação de poupanças, mas também aumentando a adimplência e formalizando a economia. A África do Sul, que iniciou seu primeiro serviço de mobile money em 2010, registrou um aumento de 1.384% das transações móveis entre dezembro de 2010 e 2011. Nesse mesmo período, a Namíbia também registrou um aumento anual de transações móveis de 155%, a Suazilândia, 227%, e a Zâmbia, 308%.

Do ponto de vista do investidor, as telecomunicações são um mercado particularmente atrativo, tendo em vista que o risco do investimento é relativamente baixo, especialmente em mercados pouco penetrados e com poucos atores. Por isso, os investimentos pioneiros costumam gerar retornos consideráveis. As comunicações se tornaram tão essenciais para as sociedades, governos e negócios que os serviços oferecidos encontram uma demanda cada vez mais alta. Além disso, os modelos de negócios baseados na expansão do pré-pago têm de lidar com baixíssimos problemas de crédito e inadimplência, o que torna o pré-pago fundamental para a difusão dos serviços – e essas são vantagens que outros grandes setores, como o automobilístico, não dispõem. A atratividade do cenário africano, aliás, garantiu que quatro dos cinco principais grupos investidores no mercado de telecomunicações fossem de fora do continente.

Tabela 1: Principais grupos investidores em telecomunicações na África

Grupo

Origem do capital

Número de conexões

MNT

África do Sul

130.813.244

France Telecom

França

79.045.750

Vodacom

Reino Unido

47.835.000

Etisalat

Emirados Árabes

36.905.935

STC

Arábia Saudita

9.180.165

Fonte: Elaboração do autor com dados de Wireless Intelligence (2012).

Finalmente, o mercado africano cresce em lucratividade e em oportunidades, gerando consequências positivas para outras áreas da economia. Ainda mais, um estudo do Banco Mundial de 2009 concluiu o aumento de 10% na penetração da banda larga implica diretamente na alavancagem de 1,3% do crescimento econômico de um país – e a telefonia celular é o principal difusor da banda larga em razão da vertiginosa procura pela banda larga móvel. Essa relação entre telecomunicações e desenvolvimento se explica, dentre outros fatores, pelo aumento da eficiência, diminuição de custos, integração do mercado e pelo compartilhamento de informações. Assim sendo, e frente ao vultoso crescimento dos últimos anos, pode-se dizer que telecomunicações e desenvolvimento andam de mãos dadas na África.

* Philipe Moura, internacionalista, é diretor de pesquisa da TechPolis Brasil.

O Observatório

Este observatório é uma iniciativa do Grupo de Estudos Africanos vinculado ao Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (GEA/IREL-UnB), que busca refletir sobre a vida política, social e econômica da África contemporânea, com destaque para sua inserção internacional. Preocupando-se com o continente marcado pela diversidade, o Grupo de Estudos Africanos, por meio do Observatório, propõe um olhar crítico e compreensivo sobre temas africanos, em suas mais diversas dimensões.